“Jesus
tomou o pão e, tendo pronunciado a benção, partiu-o e entregou-lhes, dizendo: ‘Tomai, isto é
o meu corpo”
(Mc 14,22)
Na celebração da festa de Corpus Christi, corremos o risco de honrar o Corpo de Jesus, mas desprezar o corpo humano, “ a carne de Cristo”. Participamos, com muita
fé, dedicação e respeito, das celebrações do “Corpo de Cristo”, mas pode ser que, às vezes, façamos uma profunda
cisão ou ruptura entre o que celebramos e a realidade que nos cerca, ou seja, o
encontro com os “corpos
desfigurados”: explorados, manipulados, usados, escravizados,
destruídos... Pode ser que tenhamos um
profundo amor e respeito pelo “Corpo de Cristo vivo e presente na
Eucaristia”,
e não O
vejamos nos “corpos” que estão aqui,
ali, lá, por todos os lados. “Não nos devemos
envergonhar, não devemos ter medo, não devemos sentir repugnância de tocar a
carne de Cristo”
(Papa Francisco)
É esse o sentido
que a festa de “Corpus Christi” nos revela, ou seja, a festa do Corpo
Histórico e Humano de Jesus, corpo prazeroso e sofredor, amado por muitos e
muitas, rejeitado, crucificado, morto e ressuscitado. Esta é também a festa do
grande Corpo de Cristo que é a Humanidade
inteira. Corpo real de Cristo são especialmente todos os que sofrem com Ele no
mundo, os enfermos e famintos, os rejeitados e encarcerados, os pobres e
excluídos... Eles são a humanidade ferida no Corpo do Filho de Deus.
Corpo de Cristo é também o universo inteiro, criado por
Deus para que nele se encarnasse e habitasse seu Filho. Assim Jesus, na Ceia,
ao tomar o pão e o vinho em suas mãos, abraça os bilhões de anos de evolução e
chama-os de seu Corpo e de seu Sangue. Cada cristão, ao fazer “memória” do
Corpo de Jesus, entra em comunhão com todas as energias da Criação.
Corpo de Cristo
que continua sendo o Pão, fruto da
terra e do trabalho dos homens e mulheres, todo pão que alimenta e é
compartilhado, em fraternidade, a serviço dos que tem fome.
“Corpus Christi” também nos motiva a
perguntar: Como viveu Jesus, em sua corporalidade, a relação com o Pai, com
os outros e com a natureza? E como nós somos convidados a viver nossa
corporalidade?
Jesus não compactuou com a visão dualista do ser
humano (corpo e alma). Para Ele, tudo era sacramento, epifania de Deus,
revelação do Reino, história de salvação...
Jesus escandalizou a muitos proclamando que o
“puro” ou “impuro”, não está fora, em ritos e prescrições. Não são impuros os
enfermos, as mulheres menstruadas, os leprosos, as prostitutas...; a “pureza”
está no coração que nos permite um olhar límpido, não possessivo, egoísta,
invejoso ou violento...
Jesus levou muito
a sério a questão do corpo, o seu e
o das pessoas que encontrou ao longo de sua vida. Cuidou do seu descanso e o
daqueles que com Ele compartilhavam o mesmo caminho; deixou-se acariciar e
ungir sua cabeça e seus pés com perfumes valiosíssimos por algumas mulheres,
algumas delas malvistas pelos rótulos preconceituosos que os varões lhe
impunham, agradecendo esse gesto fruto de um amor sem cálculos; curou corpos
atrofiados pela doença e fragilizados pela exploração... Os Evangelhos nos
situam Jesus no nível da corporalidade próxima: é Ele que sabe olhar, tocar,
sustentar, acariciar...
Se fixarmos nossa atenção em Jesus na última
Ceia, descobriremos que suas palavras
(“isto é, o meu corpo”) e seus gestos (partir e repartir o pão)
constituem a essência afetiva e social (de amor e justiça) do cristianismo, a
verdade central do Evangelho.
Eucaristia é “Corpo” e é corpo doado e
partilhado, não pura intimidade de pensamento, nem desejo separado da vida. A
Eucaristia é Corpo feito de amor expansivo e oblativo, que se expressa no
trabalho da terra, na comunhão do pão e do vinho, no respeito mútuo frente o
valor sagrado da vida, no meio do mundo, nas casas de todos... Não são
necessários grandes templos e nem suntuosas procissões para celebrar a festa do
Corpo de Deus; basta a vida que se faz doação e partilha, no amor, como Jesus
fez.
Diante do Corpo de Cristo, nosso corpo se plenifica na comunhão com
outros corpos, com Deus e com o corpo da natureza. Nosso humilde corpo é parte
da Criação inteira e nosso bem-estar faz sorrir a natureza.
Aqui precisamos
encontrar a justa proximidade para nos relacionar com o corpo e
estabelecer um vínculo sadio com ele. Afinal, nossas maneiras de nos relacionar
estão configuradas por ele. Não há experiência de amor, e por isso não há
experiência de Deus e dos outros, que não ocorra em nosso corpo.
O nosso corpo nos pede espaço, tempo, atenção,
alimento e, sobretudo, nos pede descanso e bem-estar, inspiração e
contemplação... O corpo não é só a
unidade de nossos membros, mas a presença de nossa pessoa; por ele estamos e somos.
O corpo
é o companheiro inseparável de nosso caminho. É preciso senti-lo,
percebê-lo, escutá-lo. Mas é preciso ir mais longe: podemos afirmar que
o corpo se transforma em caixa de
ressonância da “voz de
Deus” que nos previne contra
caminhos equivocados e nos orienta para uma vida natural e plena.
O corpo
é “lugar”
teológico, lugar da manifestação de
Deus; neste sentido é morada do divino, habitação do Espírito, enquanto
participa, pensa, sente, deseja, decide...
Quem não escuta nem percebe seu corpo não pode compreender o sentido da
vida, do amor, das relações... pois cairá no narcisismo de seu próprio ego.
Não é possível viver feliz sem relações amistosas e próximas com o corpo, para poder entendê-lo e
expressar-se adequadamente com ele. Para conhecer-se é necessário acolher o corpo, querer o corpo, observar o corpo,
olhar para dentro do próprio corpo,
com atitude reverente.
Minha própria casa é meu corpo; o
templo onde Deus se revela a mim. Só eu posso habitar e possuir meu corpo. Eu me identifico com meu corpo, sem o qual não posso viver. Deus,
com seu Espírito, anima meu corpo;
mas não pode habitar em mim a graça de Deus sem a colaboração e a abertura de
meu corpo.
Nosso corpo constitui nossa presença no
mundo; a acolhida do próprio corpo nos projeta para uma relação sadia com o corpo
do outro; é o cuidado do corpo do outro que determina nossa relação com
Deus (Mt. 25,31-46). O corpo do ferido, do faminto, do preso... tornam-se
“territórios sagrados” onde crescemos e nos humanizamos; são os “lugares” nos
quais Deus revela seu rosto compassivo.
O corpo é um documento histórico: há
corpo burguês e corpo proletário, corpo de cidade e corpo de roça; há corpos explorados e corpos que são só
força de trabalho; corpos que são modelos anatômicos; os “corpos empobrecidos”
gritam a Deus por justiça, por alimento, por saúde e por novas relações entre
os humanos e o cosmos, gritam a Deus por viver.
O corpo desrespeitado, expropriado e
dominado de muitas pessoas, clama a liberdade, a paz, a vida.
O corpo é lugar de êxtase e de opressão,
de amor e de ódio, lugar do Reino, lugar de ressurreição.
O corpo é espaço de salvação, de justiça,
de solidariedade, de acolhida, é lugar da experiência de Deus, da celebração,
da festa, da entrega... Celebrar
“Corpus Christi” é “cristificar” nossos corpos.
Texto bíblico: Mc. 14,12-16.22-26
Corpo de Cristo
Olhos inquietos por verem tudo.
Ouvidos atentos aos lamentos, aos gritos, aos chamados.
Língua disposta a falar verdade, paixão, justiça…
Cabeça que pensa, para encontrar respostas e adivinhar
caminhos, para romper noites com brilhos novos.
Mãos gastas de tanto servir, de tanto abraçar, de tanto
acolher, de tanto repartir pão, promessa e lar.
Entranhas de misericórdia para chorar as vidas golpeadas e
celebrar as alegrias.
Os pés em marcha em direção a terras
abertas e a lugares de encontro.
Cicatrizes que falam de lutas, de feridas, de entregas, de
amor, de ressurreição.
Corpo de Cristo…
Corpo nosso. (José María Olaizola, SJ)
“Tomai, Senhor, e recebei”, toda minha corporalidade, com suas pulsões, seus limites e sua energia profunda. Que não fique
nada em mim onde Tu não entres. Nenhum quarto escuro nem fechado que não seja
invadido por Ti”.
Pe. Adroaldo Palaoro, SJ
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